É bem conhecido o empenho com que a Justiça Especializada do Trabalho atua na fase de cumprimento da sentença, para dar efetividade ao que foi decidido na decisão transitada em julgado. E essa efetividade é buscada, inclusive transcendendo o patrimônio do devedor diretamente obrigado. Como a grande maioria das lides trabalhistas se trava entre a pessoa física do empregado e a pessoa jurídica – empresa – empregadora, é frequente que se lancem mão de outros institutos jurídicos próprios do Direito Civil, como a desconsideração da personalidade jurídica, penhora de direitos e até o redirecionamento do procedimento persecutório para o patrimônio das pessoas físicas que exerçam funções diretivas da empresa demandada.
Naturalmente essa Justiça Especializada teve uma gestação lenta e gradual acompanhando a evolução do pensamento político que, passo a passo foi sendo despertado para os chamados direitos sociais dos trabalhadores, aí incluída a legislação própria para o julgamento de casos de acidente de trabalho.
A Justiça do Trabalho propriamente dita já estava prevista nas Constituições de 1934 (art. 122) e de 1937 (art. 139), mas só foi criada em 1939 (Decreto nº 1.237), sendo regulamentada em 1940 (Decreto nº 6.596) e instalada em 1941.
Na cerimônia de instalação da Justiça do Trabalho, Getúlio Vargas destacou:
“A Justiça do Trabalho, que declaro instalada neste histórico Primeiro de Maio, tem essa missão. Cumpre-lhe defender de todos os perigos nossa modelar legislação social- trabalhista, aprimorá-la pela jurisprudência coerente e pela retidão e firmeza das sentenças”.
Enfim, quiçá a expressão final deste trecho da fala de Getúlio seja a inspiração para a firmeza pela busca de efetividade dos julgados, que, aliás, deveria ser a tônica de todos os julgados seja de que ramo da Justiça for, posto que se o julgamento foi justo nada mais natural que se execute tal como decidido.
Na seara das atividades empresariais é inquestionável que desde os mais remotos tempos, nem todos os empreendimentos alcançam o sucesso. Alguns vem a ser mal sucedidos e naufragam, daí nascendo o velho instituto da “quebra”, depois tecnicamente denominada falência. E, entre o sucesso e o fracasso emergiram institutos preventivos para evitar a quebra. Na lei falimentar de 1945, denominava-se Concordata. Na novel legislação de 2005, reformulada em 2020, denomina-se Recuperação Judicial. É instituto destinado à reestruturação da empresa em crise, uma vez que aos empreendimentos econômicos se reconhecem interesses que vão além dos particulares do empreendedor, mas são tidos como de interesse do Estado, como relevantes à economia como um todo e mais particularmente aos interesses tributários e a manutenção de empregos.
A Lei 11.101/2005, alterada pela Lei 14.112/2020, no seu artigo 47, estabelece como objetivo da recuperação judicial: “...viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”
Segundo a mesma lei, cabe ao devedor elaborar o PLANO DE RECUPERAÇÃO judicial e apresentá-lo aos credores concursais. O procedimento converge para que os credores possam apreciar o plano de recuperação em assembleia geral de credores. Ou seja, o plano de recuperação não é empurrado goela a baixo dos credores, mas é negociado, modificado e enfim, aprovado pela maioria, se constituindo, pois, num regramento a que todos se submetem voluntariamente, eis que fruto do consenso entre as partes, dentre elas os próprios credores trabalhistas.
Regra fundamental na recuperação é a prevista no art. 59 da LFRE, nestes termos: “O plano de recuperação judicial implica novação(1) dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos...” Ou seja, uma vez aprovado o Plano de Recuperação na Assembleia Geral dos Credores, os créditos de cada credor já não é mais o original, qualquer que seja a natureza do título que lhe dá sustentação. Da mesma forma, pela novação causada pela aprovação do Plano, já não subsistem os prazos de vencimentos das obrigações. As novas datas de adimplemento das obrigações do devedor, são as que foram aprovadas na Assembleia pelos credores. Na lei civil a novação é negocial; na LFRE, resulta de disposição da lei.
É justamente neste aspecto que se tem verificado imperdoáveis equívocos pelos profissionais com atuação na Justiça do Trabalho, sejam os patronos dos Credores e até mesmo dos profissionais dessa Justiça Especializada. Em que consiste o propalado equívoco? Tem consistido em tentativas de, uma vez pagos pelo crédito novado, no âmbito da Recuperação Judicial, reencetar em procedimento de cumprimento de sentença na Justiça do Trabalho, o “saldo” verificável entre o valor do crédito liquidado e o valor recebido na Recuperação.
O imperdoável equivoco dessas tentativas resulta de incompreensão do regramento da LFRE - Lei de Falências e Recuperação Judicial – em geral e do instituto da novação em particular. Ora, se o Plano de Recuperação, por maior que seja o deságio previsto em relação à dívida original, resultou de consenso de que participou o credor trabalhista e se por efeito da aprovação do Plano há novação (art. 59) não existe saldo a receber e, ipso facto, nem deveriam ser recebidos tais pedidos no âmbito da Justiça do Trabalho. Esta Justiça já não tem mais competência para ressuscitar a lide em que já exauriu sua missão. Se o legislador quisesse que os créditos trabalhistas fossem pagos integralmente, teria inserido tal norma da lei. O art. 49 da LFRE é expresso: “Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos” (destaquei). E, conforme o art. 50, I da mesma lei, uma das alternativas à recuperação é a “concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações.” Portanto, no procedimento recuperacional, o deságio é uma das formas de recuperação.
Registre-se aqui, uma certa criatividade dos patronos ao não direcionarem esses pedidos à empresa em recuperação mas tentam direcionar contra os seus Diretores, como se coobrigados fossem.
Imagine-se a “trabalheira” que isso gera para os Procuradores da empresa em recuperação. Mas, tanto quanto sei, felizmente essas tentativas de cobrar esses “saldos”, tem sido reiteradamente fulminadas pelo Eg. STJ em incidentes de que é paradigma o Conflito de Competência nº 193833 - RS (2022/0398972-0), Relatora a Eminente Ministra Nancy Andrighi, de cuja decisão, colaciono a ementa mais o excerto que seguem:
CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO LABORAL E JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PLANO HOMOLOGADO. CLÁUSULA. CRÉDITO NOVADO. EXECUÇÃO CONTRA OS SÓCIOS. IMPEDIMENTO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PELO JUÍZO LABORAL. CONFLITO. CARACTERIZAÇÃO.
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Logo, merece ser acolhido o presente conflito de competência. Com efeito, como a decisão homologatória do plano acabou por obstar a execução contra a recuperanda e também seus sócios, compete ao juízo da recuperação judicial avaliar se a hipótese que subjaz ao presente incidente está contemplada pela referida cláusula protetiva, bem como se é cabível, no caso, a desconsideração requerida na Justiça Laboral.
A situação é clara e os equívocos ocorrem por falta de compreensão correta da LFRE, ou seja, créditos trabalhistas, uma vez habilitados nos autos de uma Recuperação Judicial, qualquer que seja seu valor, mas novados por efeito da aprovação do Plano de Recuperação Judicial, passam a “rezar conforme esta nova cartilha” e o valor a receber pelo trabalhador é o valor novado e nas condições e prazos(2) estabelecidos pelo plano.
E para ilustrar a incompreensão do alcance interpretativo da Lei de Recuperação e Falências, relato episódio de certa forma hilário de que soube recentemente. Em audiência trabalhista em que a Reclamada era empresa em Recuperação, com plano já aprovado, no momento de debater possibilidade de acordo, o Procurador da demandada expos que o limite máximo que poderia oferecer era o valor constante daquele plano e a Magistrada que presidia o ato mostrou-se bastante indignada, advertindo o Advogado que ele estava tentando lhe ensinar a como dar a sentença no caso. À toda evidência não se tratava de ensinar a sentenciar, mas sim que seria incoerente fazer acordo por “X”, quando o Plano já aprovado estabelecia um teto com valor “Y” e, pois, que seria contraditório para não dizer desonesto, fazer acordo por valor maior que “Y” porque esse seria o valor estabelecido para todos os credores trabalhistas.
Enfim e lamentavelmente, constata-se que a despeito da nova Lei de Falências e Recuperação já estar prestes a chegar a 20 anos de vigência, muitos operadores do Direito ainda não compreendem seu alcance. É legítimo que cada credor lute por receber a totalidade de seu crédito. É legítimo que a Justiça do Trabalho valorize suas decisões, todavia, em seu âmbito, circunscrita em sua esfera de competência. Uma vez que o crédito saiu da esfera da Justiça do Trabalho e, mediante o incidente de Habilitação, ingressou na esfera a Justiça Comum, é impossível ressuscitá-lo e menos ainda instaurar cumprimento de sentença.
De lembrar-se que no âmbito da Recuperação Judicial prepondera o princípio da preservação da empresa e, pois, nesse aspecto a novação das dívidas por efeito do Plano aprovado pelos credores, torna completamente injurídicas essas tentativas de restaurar a lide na Justiça do Trabalho, na vã esperança de receber suposta diferença, ou saldo, ainda que pela via indireta da desconsideração da personalidade jurídica da empresa em recuperação. Insista-se: crédito novado é outro crédito diverso do original e o pagamento à menor faz parte do escopo maior de preservação da empresa
José Darci Pereira Morsch Soares, Administrador Judicial, OAB/RS 44.198 / outubro de 2023.
1 Art. 360, I, do Código Civil: Dá-se a novação... quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior...
2 Nesse aspecto, aliás, a própria lei já procurou privilegiar os trabalhadores estabelecendo que seus créditos sejam satisfeitos em até um ano (art. 54 da LFRE).