A EXECUÇÃO COM PENHORA SOBREVIVE À RECUPERAÇÃO JUDICIAL?




A EXECUÇÃO COM PENHORA SOBREVIVE À RECUPERAÇÃO JUDICIAL?

 

Há mais de duas décadas tenho sido honrado com nomeações para o mister de Administrador Judicial. Como notório, o “AJ” além das atribuições de fiscalização, intervêm como ‘parecerista’ nos feitos conexos às Recuperações. E, decorrente dos muitos enfrentamentos de debates acerca da ‘sobrevivência’ da penhora lavrada em Execuções de Títulos, me animo a tecer estas considerações no afã de trazer uma pequenina luz no correto posicionamento dessa constrição, uma vez sobrevinda a recuperação judicial do executado. Mister esclarecer que estou tratando de Execuções em que inexistam coobrigados, mas tão somente a devedora em recuperação.

Na seara da falência esse debate não tem lugar. A falência é a ‘morte’ jurídica da empresa. O que remanesce é seu espólio, seus despojos, tecnicamente conhecido como Massa Falida, que é a universalidade de bens e direitos. E, por óbvio, as Execuções que se achavam em curso, salvo alguma particularidade como é o caso de execução com leilão já agendado, mas cujo produto da venda será disponibilizado ao Juízo da Falência, se convertem em habilitação. Ou seja, a falência instaura a execução coletiva, daí não fazer sentido penhora em benefício de exequente singular.

A Recuperação Judicial é um instituto complexo. O empresário mantém a direção de seus negócios, fiscalizado de perto pelo Administrador Judicial. Grosso modo, todos os créditos existentes na data do pedido ficam a ela sujeitos, salvo as exceções - art. 49, § 3º, da LFRE. Uma das causas preponderantes na constatação da crise da empresa devedora é a falta de liquidez financeira. Dela decorrem os atrasos ou inadimplementos e, corolário natural, a persecução dos créditos mediante processo de Execução. E a viga mestra desta ou cumprimento de sentença é a penhora de bens bastantes, de cuja venda forçada mediante leilão vêm os valores para satisfação do crédito. O despacho que defere o processamento da Recuperação Judicial determina a suspensão

– art. 52, III, da LFRE – das execuções, inclusive em outros Juízos. E elas ainda sofrerão o impacto de eventual prorrogação do chamado período de proteção, o que ocorre na esmagadora maioria, senão na totalidade dos casos.

Nesse interregno, publicado o Edital com a Relação de Credores da devedora, sobrevêm a fase do acertamento dos créditos omitidos dessa relação ou, se nela inseridos, houver discordância seja quanto ao valor, seja quanto à classificação. Cabe ao Administrador Judicial fazer o ‘julgamento’ dessas habilitações ou divergências e, isso gera uma segunda Relação de Credores que substitui a primeira, também divulgada por Edital. Os credores não satisfeitos com o julgamento do Administrador podem interpor Impugnações que serão apreciadas pelo Juízo que preside a Recuperação (art. 8º). E, finalmente, os que perderam os prazos anteriores ainda podem formular seus pleitos como habilitações retardatárias (art. 10), mas sofrerão a sanção de não terem direito de voz e voto na Assembleia Geral de Credores, salvo os trabalhistas que, mesmo retardatários, participam da AGC.

O certo é que, sendo definitiva – infensa a recursos - essa equalização dos créditos, seja pelo quantum ou da classificação nestes incidentes do procedimento recuperacional, todos os credores, salvo os excepcionados no § 3º, do art. 49, ficam jungidos aos ditames da recuperação. E isso, muda todo o cenário. Se na execução o credor tinha a expectativa de receber a totalidade de seu crédito, acrescido dos encargos gerados pelo processo, na Recuperação novos parâmetros serão propostos pelo Plano de Recuperação. E, como quem confessa as próprias fragilidades, não há plano que não lance mão dos meios de recuperação elencados na própria lei (art. 50) e dentre eles os mais usuais: (a) prazos de carência, (b) deságio e (c) pagamento em prazos alongados.

É evidente que essas novas condições serão apreciadas, eventualmente modificadas e, por fim, aprovadas ou rejeitadas pelo universo de credores que participarem da Assembleia Geral de Credores. E o que for aprovado, terá o condão de novar os créditos originais, seja quanto ao vencimento seja quanto ao montante e formas de pagamento.

Enquanto se desenrolam esses incidentes da Recuperação Judicial, o empresário em crise deve continuar tocando seu negócio, sendo de se esperar que com muito mais liberdade e proficiência porque, como costumo dizer, “recuperação judicial não é salvo conduto para dar calote nos credores”. A lei facilita, alavanca a retomada dos negócios, mas não livra da obrigação de pagar. O empresário tem que se preocupar em administrar gerando lucros e ir formando reservas que lhe permitam atender o dever de pagar os credores, dentre os quais, os trabalhistas em prazo exíguos que vão de 30 dias até dois anos (art. 54 e §§), após a aprovação do plano.

É neste contexto que as execuções por quantia certa e sem a existência de coobrigados perdem seu objeto e podem ser extintas, uma vez comprovado que o crédito já não é passível de recursos no bojo da recuperação judicial. E, se porventura na execução já existirem bens penhorados, essa penhora pode ser levantada, ficando os bens livres para que o empresário deles disponha para o prosseguimento de suas atividades, as quais como se disse, devem se tornar as mais lucrativas possíveis porque ele precisa acumular capitais para a futura satisfação de seus credores, ainda que com as regras mais favoráveis aprovadas na AGC. Manter a constrição de bens que constituam o escopo principal do comércio ou da atividade empresarial da Recuperanda, seria manter a asfixia que a levou a situação de crise.

Figuremos um exemplo na expectativa de bem aclarar o raciocínio. Imaginemos que Freud & Jung Ltda seja uma próspera comerciante de parafusos. Seu acervo costuma ser de milhões de unidades. Depois de alguns anos de inabalável sucesso lhes sobrevêm uma crise, enfrenta uma enxurrada de execuções, nas quais 95% de seu acervo está constrito por penhoras. Busca a recuperação. Nesta os credores fazem o acertamento de seus créditos, mas as execuções e respectivas penhoras restaram intocadas. Ainda que a recuperação lhe proporcione alívio da ‘pressão” dos credores, a não liberação das penhoras tolhe o pleno potencial de seu comércio. Negociando em níveis mínimos a empresa não gera lucros capazes de formar as reservas para pagamento dos credores a despeito do deságio de valores e dilação de prazos.

O cenário seria outro, se uma vez acertados o quantum e classificação dos créditos na recuperação, as execuções e respectivas penhoras fossem extintas, viabilizando o pleno potencial da atividade comercial do devedor. Este vai trabalhar, sem a persecução singular de dezenas de credores. Vai se preocupar em acumular capitais para pagamentos equalizados, ainda que em categorias distintas.

É óbvio que os credores não submetidos à recuperação (art. 49, § 3º e fiscais) ou os que possam redirecionar as execuções contra eventuais coobrigados, prosseguiriam suas persecuções normalmente. Mas as constrições já lavradas em favor de credores submetidos à recuperação, se mantidas, destoam do espírito da recuperação judicial, como delineados no art. 47 da LFRE e vão se constituir em obstáculo à viabilidade do soerguimento da empresa em crise.

E note-se que o levantamento dessas constrições não significa dar ‘carta branca’ ao empresário, porque todas as suas atividades são necessariamente fiscalizadas e acompanhadas pelo Administrador judicial, a quem cabe velar pela correção, a fim de que o novo equilíbrio proporcionado pelo procedimento recuperacional não se transforme em vantagens indevidas para nenhuma das partes.

Outro aspecto a ser observado diz com a competência judicial. Consabido que a decisão que determina a suspensão das execuções em curso, estende sua eficácia aos processos que correm perante outros Juízos, a quem por cortesia, respeito e exação legal é comunicada a instauração da recuperação. Note- se a imperatividade do despacho do Juízo da recuperação. Sua eficácia transcende os limites da Vara de origem e vai atingir feitos sob outras jurisdições.

Mas no que respeita às penhoras existe efeito automático? Óbvio que não, mesmo porque o comunicado expedido diz apenas com a instauração do procedimento da recuperação. Cabe, pois, à devedora por seus procuradores, caso a caso, formular os pleitos no sentido aqui defendido. E tal providência a meu ver deve ser encetada tão logo os créditos já estejam estabilizados no bojo da recuperação. Ou seja, estar o crédito bem definido no bojo da Recuperação, seria condição para o pleito relativo às penhoras a serem supressas.

A recuperação de empresas em crise tem indiscutível interesse público. Então para que bem se cumpra os propósitos do legislador, há que se achar a mais sábia, a mais equilibrada interpretação da lei e não manter os mesmos obstáculos que deflagraram a crise. A manutenção das penhoras depois de definidos os créditos no bojo da recuperação, é um grande obstáculo. Sem essa salutar supressão muito mais dificultosa, por certo será a tentativa de re-decolagem da empresa em crise. Não basta diagnosticar o mal; há que se ministrar os remédios para a melhora e a cura.

 

José Darci Pereira Soares, OAB/RS 44.198.